Questão de identidade - entrevista com Nayara Jinknss

Nayara Jinknss é uma das novas promessas da fotografia brasileira. Mulher negra e homossexual, vinda de uma pequena cidade no entorno de Belém, fez da luta identitária sua bandeira estética e política. E acredita na fotografia como ferramenta de mudança social.

Seu principal projeto é um longo ensaio sobre o Ver-o-Peso. Há dez anos, fotografa a vida no tradicional mercado municipal da capital paraense. Suas personagens são pessoas por vezes marginalizada, quase sempre sem voz. Pequenos comerciantes, carregadores, ambulantes, fileteiros (limpadores de peixe), moradores de rua, cabeleireiros, praticantes do candomblé, traficantes, prostitutas e transexuais dos quais se aproxima em busca de empatia.

Aos poucos, o trabalho começou a chamar a atenção fora do Estado e Jinknss se tornou uma influenciadora digital. Hoje, tem quase 35 mil seguidores no Instagram. A qualidade de seu trabalho, a visibilidade das redes sociais e a atualidade das questões que discute também a ajudaram a ser escolhida para participar do reality show Arte na Fotografia. do Arte 1. No último dia 18 de julho, Nayara foi anunciada vencedora do programa.

Aos 29 anos, ela quer agora se “movimentar pelo mundo”. Aguarda só o fim da pandemia. De Ananideua, onde passa a quarentena com a família, contou sobre as dificuldades de ingressar na fotografia documental fora dos grandes centros e com pouco dinheiro, do projeto no Ver-o-Peso, da fotografia como instrumento de educação e mudança social, da participação no Arte na Fotografia e dos seus projetos para o futuro.

De onde veio seu interesse inicial pela fotografia?

Desde de pequena, sempre gostei de fotografia, mas nunca fui incentivada a consumir ou a gostar de artes. A gente tinha uma camerazinha analógica, presente de aniversário da minha avó. Minha mãe reclamava bastante de comprar filme e eu não sair em nenhuma foto. Ficava tirando só dos meus amigos, na escola. E aí, aos dezessete anos, eu me interessei, do nada, por fotografia. Precisava de uma graduação. Como eu sempre converso muito, sou muito dada com todo mundo, cresci com a galera dizendo que eu ia fazer jornalismo. Só que eu sou geminiana, enjoo muito rápido das coisas. Queria um curso que me agradasse em variados momentos. E sem querer encontrei o curso de artes visuais. Conversei com uma amiga que fazia e entendi que, em cada semestre, são coisas diferentes, artes, movimentos artísticos. Me interessei e procurei uma graduação que tivesse por mais tempo fotografia. Na Universidade Federal do Pará (UFPA), era só um semestre. Só que tinha uma outra universidade, a Universidade da Amazônia (Unama), que dava três semestres de fotografia. Aí eu falei, “é isso”. Desde o primeiro ano, não parei mais. Juntou minha avó, minha mãe, meu pai e a gente conseguiu comprar uma câmera. Já fiz de tudo: casamento, book, foto para catálogo. Muita gente falou: “ah tu não vai conseguir bancar a tua vida fazendo artes visuais”. Mas a gente nunca foi rico aqui em casa. Então, na minha cabeça, se eu conseguisse sobreviver de fotografia de um jeito bacana, estava OK.

O que te atraiu inicialmente na fotografia? E o que te atrai hoje?

O que me atraiu foi o poder de capturar a imagem, sabe? Devido aos exercícios, a quantidade de vezes que ficava brincando com a câmera, eu conseguia fazer imagens tecnicamente muito bonitas até. Só que depois de um tempo, fui entendendo que existia algo a mais nessa fotografia que eu queria. Quando me formei, com 23 ou 24 anos, fui fazer uma pós em cinema, no Rio de Janeiro. Minha mãe pagava a universidade e eu me virava para sobreviver. Só que quando cheguei no Rio, comecei a ser lida de outra maneira, a sofrer violências de racismo que, em Belém, não sofria, ou não sentia, porque até então não reconhecia como o racismo. Não me identificava como mulher negra. Em Belém, muitos de nós se identificam com esse ser que é moreno. Mas, na verdade, esse ser moreno é um negro de pele clara. Percebendo essas questões, imaginei que se eu não entendia os racismos pelos quais passava, provavelmente os reproduzia. Era muito racista e homofóbica, mesmo sendo homossexual. Não identificava a urgência de falar de várias questões. Simplesmente brincava, pensando que não afetava ninguém. Mas afeta. Com o tempo, fui entendendo a necessidade de me posicionar, de falar sobre essas coisas. Comecei a me aproximar do feminismo, a ler autoras negras. 

Essas referências mudaram a sua fotografia?

Quando eu comecei fotografar, a maior parte das minhas referências eram homens brancos. Miguel Rio Branco, Sebastião Salgado, João Ripper. João Ripper foi o cara que mudou a minha vida. Embora seja um homem branco, cis, ele tem uma fotografia que me atravessa desde o primeiro dia que entrei em contato. Ainda é pra mim uma das maiores referências. Essa fotografia com poder educacional, de dar dignidade para as pessoas, de não reforçar estereótipos, de não marginalizar. Fui percebendo algumas questões e buscando trabalhar isso dentro da minha fotografia.

São os temas que você busca fotografar hoje em dia?

Minha foto trabalha com todas essas questões que um dia me afastaram do mercado de trabalho. O fato de ser negra, lésbica, descentralizada. Porque eu não sou periférica, eu sou descentralizada. Moro em Ananindeua, que fica a dezesseis quilômetros de Belém. Pensando nisso, eu comecei a ver a fotografia com essa urgência de poder falar sobre isso. Eu sei bem como documentam a Amazônia, Belém, como é que falam da gente, como é que nos fotografam. São coisas que eu não quero mais pra mim. Então, venho propondo um novo olhar. Somos muito mais do que flora e fauna. Precisamos olhar para a gente com complexidade, porque aí sim a gente entende as nossas diferenças.

Você passou mais de dez anos fotografando o mercado Ver-o-Peso. Como era a sua rotina de trabalho e seu processo de criação no início? E como ele mudou? 

O Ver-o-Peso está presente na minha vida desde sempre. Minha avó foi feirante. Minha mãe já trabalhou em uma sapataria lá. Sempre estive no Ver-o-peso. E sempre gostei muito, sempre falei com todo mundo. Algo que aprendi também dentro de casa. Comecei a fotografar o Ver-o-Peso com dezoito, dezenove anos. E o Ver-o-Peso é uma área em que você não pode marcar touca. Como toda zona portuária, se marcar, pode ser assaltado. Também construíram uma imagem do Ver-o-Peso em que ele é sempre marginalizado, por conta do pitiú, que é o odor do peixe, ou porque lá tem muita gente que pode te assaltar. Então, no início, eu ficava com medo. Ia fotografar às dez e voltava na hora do almoço. Com o tempo, ia até quase seis horas (em Belém, é quase noite). Só que nunca conseguia ir de madrugada, que é o horário em que chegam as embarcações com tudo que vem das ilhas e dos arredores de Belém para abastecer a feira. Isso estava me irritando muito, porque eu sempre quis ser inclusa no meio dos fotógrafos mais tradicionais. Sempre quis poder dar esse rolê com eles, me sentir segura, fotografar junto. Mas sentia que eu não me encaixava. Queria fazer coleta para ir pro Ver-o-Peso de madrugada de táxi e ninguém endossava. 

Não tinha com quem ir...

Só que aí a minha família conseguiu comprar um carro e eu vi a foto de um brother, de quem não vou muito com a cara, no Ver-o-Peso. Aí falei: “quer saber? Pois agora eu vou de madrugada”. Por mais que hoje eu não goste mais tanto do trabalho do Miguel Rio Branco, foi num dos livros dele que eu compreendi que, se ele não pagava para fazer as fotos que fazia, tinha que ter uma intimidade muito grande com as pessoas. Descobri depois que ele passou um tempo no Pelourinho para conseguir fazer aquelas imagens. Ai falei: “porra, para fazer as imagens que quero, vou precisar ‘morar’ no Ver-o-Peso”. Então, estipulei uma meta. “Pelo menos umas três vezes por semana, vou chegar lá às três da manhã e vou começar a fotografar só quando tiver luz, às seis da manhã”. 

O que você fazia até ter luz para fotografar?

Ficava conversando, pulava de local em local. Comecei a vivenciar muitas situações, a conhecer todo mundo. A galera começou a me enxergar. A minha rotina foi se transformando nessa. Eu levava fotos, adicionava no meu Face, dava meu Whatsapp, mandava coisas no Instagram. Porque para mim a fotografia sempre foi fotografar as pessoas que gosto, com carinho. Para que elas se enxerguem. É um prazer quando elas se olham nas imagens e se acham bonitas, querem levar para a casa, mostrar para a mãe. Deixa de ser só aquela coisa técnica para estabelecer um vínculo. A gente deixa de enxergar eles só como fileteiros, ou só como usuários de drogas, pessoas em situação de rua, de vulnerabilidade social. É importante fazer com que as pessoas que um dia foram que nem eu, que foram racistas, ou são racistas, repensem. Pensem, por exemplo, na possibilidade de que um morador de rua tem um amor, uma paixão. Fico pensando nesses questionamentos para além de falar só de droga, ou de mostrar o cachimbo deles. Posso até mostrar, mas não quero reduzi-los, ou usar a fotografia como arma. É possibilitar uma outra leitura, né? Muitas vezes, essa outra leitura precisa sair desse recorte da ótica de um homem normativo, branco, cis. Não estou me colocando como santa. Porque nunca fui. Mas é incentivar mesmo, propor. Porque, enfim, a gente em Belém não se enxerga nos livros e nega muitas vezes as coisas daqui. Só sabe o que nos conta uma cultura às vezes embranquecida. Só passa a valorizar o que vive, a nossa cultura, quando vai embora de Belém. E aí, o Ver-o-Peso acaba sendo esse meu “objeto de pesquisa”. Estou indo até hoje. 

Mudaram os teus temas de interesse? Mudou a tua forma de abordar os assunto?

Agora que participei desse programa de TV, o Arte na Fotografia, percebo que consigo ver nitidamente uma mudança. Consigo falar de política, mas também trazer uma fotografia um pouco mais conceitual, algo para além do fotojornalismo, da documentação do cotidiano. O meu discurso é muito político, ativista. A fotografia é como eu enxergo a vida. Pretendo conversar com as pessoas. É também um instrumento através do qual eu me entendo. Hoje em dia, eu posso até mudar de local. Ir para a feira de São Joaquim, na Bahia, por exemplo. Mas encontro lá os mesmos atravessamentos. A questão racial, de gênero, a sexualidade. Fico pensando de que maneira consigo abordar isso, para não ser só uma coisa repetitiva.

A que temas/projetos tem se dedicado?

Para que os projetos não sejam apenas o meu ato fotográfico, muitas vezes me dedico a atuar em escolas para fazer com que ninguém precise pagar para saber o que eu te digo aqui. Tenho o grande sonho de fazer uma escola de fotografia popular. É um dos princípios da fotografia de bem querer do Ripper também. Ele tem em um projeto no Complexo da Maré, de formação de jovens da periferia em fotógrafos. Meu sonho é que a fotografia seja uma linguagem que todo mundo possa usar para se expressar. É muito difícil, em Belém, encontrar mulheres trans documentando, por exemplo. Eu, embora tenha todos os meus atravessamentos, não sei como é a vivência de uma mulher trans. Nada mais justo do que alguém que vivencia aquela realidade poder documentá-la. Vai ter mais tato. Então, o que que eu posso fazer? O meu poder, para além do registro, é atuar na formação. A fotografia é educação. A arte é instrumento de mudança e precisa ser valorizada, precisa ser enaltecida. Precisa ser acessível, também. A gente precisa se valorizar, enaltecer a nossa cultura, para que a gente entenda a importância que tem, para que não a apague. 

Você consegue viver da fotografia documental?

Estes estão sendo os primeiros meses, em onze anos trabalhando com fotografia, sem precisar de um trabalho fixo. Mas também segurei a onda para guardar uma graninha e sobreviver esse período. E venho vendendo fotos. Aqui em Belém, para você ser artista, tem que ter outra profissão. Sobreviver dessa fotografia, que é independente, é quase impossível. Porque o Estado não valoriza os artistas. Tenho feito uma curadoria para o Mídia Ninja sobre mulheres que estão documentando na região Norte e sinto muita dificuldade para encontrá-las.

O que você foi buscar no Arte na Fotografia? Que efeito teve na sua fotografia? 

Fui incentivada por uma amiga, a fotógrafa ativista Isa Medeiros. Ela me disse: “se inscreve nesse negócio, porque tu é toda blogueira. Se não ganhares a câmera, porque o prêmio é uma câmera, e a minha está defasada, tu pelo menos vais falar sobre Belém, sobre as coisas que tu enxergas”. Aí eu pensei, OK. Fui para ganhar uma câmera e ponto. Para além disso, sabia que era muito importante falar sobre Belém e as nossas lutas. Uma das coisas que falei no programa foi sobre o Sebastião Salgado na entrevista com o Pedro Bial. Se  vejo o Sebastião Salgado, grande referência na fotografia, falando que fotografia de celular não é foto, eu vou me frustrar. E não quero isso. Porque é óbvio que você vai ter uma limitação técnica. Mas enquanto não consegue ter acesso a uma câmera, tenta documentar de uma outra maneira, mas não para. Hoje, faço parte do coletivo Mamana, que tem outras fotógrafas, de outras regiões. A gente precisa criar um diálogo, criar uma rede, incentivar através da representatividade que as pessoas se sintam confiantes continuar o que estão fazendo. Falei com muitas mulheres do movimento negro, com muitas mulheres, de modo geral, para saber o que precisava fazer com que as pessoas escutassem, já que estava tendo o privilégio de falar em rede nacional. Porque, enfim, não sou dona da verdade, mas percebo que tem coisas em comum entre as mulheres daqui e do resto do Brasil.

Que equipamentos você usa? E por quê?

Uso uma Canon 7D, com uma cinquentinha. Mas já quase nem uso ela tanto, porque está triste. Tenho há oito anos. Uso também meu iPhone, e vou me virando nos trinta.

Como tem passado o período de pandemia?

Na minha cabeça, sempre foi muito nítido que o isolamento social é a coisa mais eficiente que a gente pode fazer se quer sair desse momento. Por mais que eu quisesse muito estar na rua documentando. Até que chegou um momento, em que eu já estava surtando, e veio uma indicação de um trabalho para a Getty Images. Um trabalho de documentação do que estava acontecendo aqui em Belém, sem sensacionalismo, com EPIs, tudo certinho. Fiquei muito feliz, porque o meu trabalho é diferente do trabalho fotojornalístico. Se você pegar as minhas fotos e as fotos que estão rolando da pandemia, é um pouco diferente. A cor, a proximidade, tudo muda. Mas eu ficava pensando de que maneira poderia documentar a pandemia sem os hospitais, as covas, essa parte triste. Lembro de uma oficina com o João Ripper. Ele falava muito sobre as grandes agências gringas que enviam fotógrafos para documentar a parte épica da guerra. Mas enquanto rola a guerra, outras coisas acontecem. Então, para além disso, o que que a gente pode documentar? Fui documentar as coisas que me atravessavam e que eu acreditava que atravessavam as pessoas aqui em Belém. Fui no Ver-o-Peso tentar entender como estavam entendendo o lock down. E foi uma outra experiência voltar com tudo aquilo, com EPIs, reencontrar muita gente. Algumas pessoas não entendiam nem porque que as pessoas estavam usando máscara. Nesse momento, eu tinha que parar de fotografar para simplesmente orientar. Porque se não houver a troca, não está acontecendo o meu trabalho. E venho sobrevivendo assim, tentando fazer alguns projetos dentro do coletivo, com algumas amigas. Acredito que, passando esse sufoco, volto a me movimentar pelo mundo. Sinto que meu corpo está me puxando para fora de Belém.

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