Lembranças de Serra Pelada - entrevista com Juca Martins

Lembranças de Serra Pelada - entrevista com Juca Martins

Serra Pelada foi o maior garimpo a céu aberto do mundo em seu tempo. A descoberta de ouro de aluvião por um vaqueiro no riacho da Grota Rica, como era então conhecido o lugar, atraiu rapidamente uma legião de garimpeiros de todos os cantos do país. Juca Martins foi o primeiro fotógrafo a documentar o movimento. Chegou a Serra Pelada em 1980, quando 15 mil homens trabalhavam na cava. Havia ido à Conceição do Araguaia, no Pará, para cobrir o assassinato de um líder sindical rural. Quando soube da notícia, decidiu estender a viagem.  As imagens de homens cobertos de lama, subindo e descendo escadas de madeira carregando sacos de terra, lembrando formigas, se tornariam famosas em todo o mundo. Venceu com uma o Prêmio Internacional Nikon, em 1981. Voltou depois ao garimpo, em 1986, no auge, quando 120 mil garimpeiros procuravam ouro no local, e ampliou o ensaio.

Parte do trabalho, as fotos coloridas feitas por Martins em sua segunda viagem, pode ser vista até dia 20 de agosto na Galeria Utópica. A exposição A febre do ouro é composta por 17 fotografias inéditas que mostram o trabalho intenso na cratera de 24 mil metros quadrados, aberta em meio da floresta a pouco mais de 100 quilômetros de Marabá.

Além do trabalho em Serra Pelada, Martins é conhecido pela trajetória de quase 50 anos no jornalismo brasileiro. Nascido em 1949, em Barcelos, Portugal, mudou-se com a família para São Paulo ainda menino. Começou a fotografar em 1970 e fundou, anos mais tarde, a Agência F4, ao lado de Nair Benedicto, Delfim Martins e Ricardo Malta. Primeira cooperativa de fotojornalismo brasileira, a agência ficaria conhecida, entre outras coisas, pela luta pela valorização da profissão e a defesa dos direitos de autor dos fotógrafos, a exemplo do que fez, lá fora, a lendária Magnum. Após a dissolução da F4, fundou ainda a agência Pulsar Imagens, em 1991, com Laura Del Mar e Delfim Martins. 

Ao longo da carreira, trabalhou e colaborou com jornais brasileiros e estrangeiros, e foi diretor de arte do jornal Movimento, uma das mais importantes publicações alternativas do período de ditadura militar no Brasil. Cobriu conflitos no Líbano, em El Salvador e na Guatemala; recebeu o Prêmio Esso, em 1980, o Prêmio Wladimir Herzog, em 1982, e duas vezes o Prêmio Internacional Nikon (1979 e 1981). Seu trabalho, sempre politizado, já foi exposto na Espanha, Itália, França, Alemanha, Suíça, México, Cuba, Colômbia e Equador e integra o acervo de museus aqui e lá fora. Lançou uma série de livros, entre os quais, A greve do ABC (1980), Crianças do Brasil (1981), Festas populares brasileiras (1987) e São Paulo/Capital (1998). 

Na entrevista a seguir, Martins fala sobre suas memórias de Serra Pelada, da experiência de fotografar no garimpo, do trabalho atual como editor e fotógrafo da agência online Olhar Imagem, da qual é fundador, e como coordenador do grupo de fotógrafos Fotobrasilis, no Facebook, entre outros assuntos.

Como foi a sua experiência em Serra Pelada? Você foi duas vezes, certo?

Fui. O começo, em 1980, logo no começo do garimpo. Teve toda a dificuldade de chegar no lugar. Na verdade, eu tinha ido para Conceição do Araguaia, para fazer uma matéria sobre o assassinato de um líder sindical rural. A partir de lá, já estava rolando a notícia de que havia sido descoberto um garimpo. Então, fui de ônibus. Durante a noite, viajei até Marabá. Em Marabá, tentei falar com um piloto de avião, combinar o preço. Mas tinha que ter uma autorização do Major Curió, que era o cara que controlava o garimpo, ligado ao SNI. Mandei minha credencial da Federação Nacional dos Jornalistas (FNAJ), pelo piloto. Ele levou ao garimpo, apresentou ao Curió. Eu fiquei no aeroporto de Marabá esperando e, seis horas depois, ele volta com a minha credencial dizendo: “ó, o major Curió autorizou a sua ida”. Ai eu fui. Desci no aeroporto, como todo mundo. Fui revistado, como todo mundo que chegava tanto de avião quando por trilhas cruzando a floresta. Passei dois dias fotografando. Voltei, seis anos depois, em 1986, já no final do garimpo. Já era uma situação completamente diferente. Não era mais o Serviço Nacional de Informações (SNI) que controlava. Era a associação de garimpeiros de Serra Pelada que fazia o controle. Era preciso ter carteirinha para poder garimpar. Já tinha interferência de gente ligada ao Ministérios de Minas e Energia, de controle de solo. Era outra estrutura. E já tinha uma mini cidade, com mercadinho e outras coisas, tudo de madeira, parecendo velho oeste. Foram dois períodos, nesse espaço de seis ano. Dois dias na primeira viagem e dois dias, na segunda. 

Você fotografava o tempo todo?

O tempo inteiro. É uma coisa tão rica. Onde você olha, tem foto para fazer. Não dá pra perder clique.

Na exposição, você privilegiou as fotos do garimpo, mesmo. Do pessoal extraindo ouro. Mas você tem fotos do entorno?

Não, eu priorizei. O que interessava, mesmo, era o garimpo. Na primeira vez que fui, não tinha uma vida fora do garimpo. Os garimpeiros viviam em barracas praticamente do lado de onde eles estavam cavando. Na segunda, você já tinha uma cidadezinha, uma rua principal. A Associação de garimpeiros já era uma casa em madeira. O hotel onde eu fiquei hospedado já tinha dois andares, em madeira, com música ambiente, com bar. Mas disso eu tenho um clique ou outro. O meu interesse era a cava, a notícia estava lá. Talvez se eu tivesse mais de dois dias, talvez fosse o caso. Se você pegar uma semana, duas semanas, seria o ideal. Porque ai você pode acompanhar o cara lá dentro e ir com ele na hora que ele se lava e vai pra casa dele. Mas ai precisaria investir mais para fazer.

E você descia aquelas escadas todas?

Descia. Mas até lá no fundo eu nunca desci. Ia até o meio do caminho, ou por um caminho mais fácil, e descia. Porque o risco de ir lá embaixo, de escorregar, de haver um desmoronamento, também era frequente. Eu nunca corri riscos, não só nessa matéria. Em outras também. Sempre achei que a foto não vale a vida. Eu valorizo a vida, a obra vale menos que a vida. Não vou me arriscar para ter uma foto e dizerem "pô, o cara é um gênio da fotografia". Não, eu não. Eu vou fazer fotografia legal, e tal, mas…

Esses garimpos são frequentemente associados à ambientes sem lei, caóticos. Havia algum tipo de dificuldade para fotografar? O que você sentia?

Não, já tinha lei. O major Curió tinha controle absoluto. Você não entrava assim. Era revistado ao entrar no garimpo, para não carregar armamento. Armas eram proibidas. E você era revistado ao sair do garimpo, para evitar contrabando de ouro. Era um controle absoluto. O ouro era vendido em Serra Pelada em uma agência da Caixa Econômica Federal. Essa é uma impressão equivocada. Mesmo depois, em 1986, quando já era a associação dos garimpeiro, também havia controle. Você não entrava lá sem a carteirinha da associação. Se o cara fizesse alguma coisa errada, perdia a carteira e não conseguia mais trabalhar no garimpo. Recentemente, vi trechos de um vídeo sobre Serra Pelada, do Heitor Dhalia. Tem cenas em que o cara grita "bamborra! bamborra!", que é o que gritam quando acham uma pepita grande. Ai o cara arranca o revólver da cintura e atira para o alto. Pô, mentira. Nunca. Nunca vi pessoa com arma lá, nem dar tiro no garimpo. Aquilo é um efeito cinematográfico, não era real. No garimpo não aconteceu isso. Não tem nenhuma historia de tiro, de assassinato no garimpo de Serra Pelada, na história de seis, sete anos. O que aconteceu de violência e acidentes foi desmoronamento, falta de cuidados, por não drenar a água, morro que soterrou gente. Mas não tinha essa violência de revolver e tiro, diferente do outros garimpos. Isso parece que acontece em outros garimpos.

Você cita no texto da exposição uma história maravilhosa, do Índio, que torra uma fortuna em ouro em três anos. Como você o conheceu?

Eu não conheci. É uma citação. É uma história que está no YouTube. Quando eu fui em 1986, era uma referência. A história desse Índio circulava lá. Eu, pessoalmente, nunca conheci o cara. Nunca falei com ele. Mas ele se tornou um mito, uma história do folclore do garimpo.

Quais os teus projetos hoje?

Atualmente, eu cuido da Olhar Imagem, uma agência online de venda de fotos, licenciamento para revistas e livros escolares. Mais para mídia impressa. A agência não é só minha. Tenho um grupo de fotógrafos que trabalham comigo. Eu coordeno uma página no Facebook, chamada FotoBrasilis, onde eu fotografo, mais um grupo de 20, 20 e poucos fotógrafos também, e publicam lá. A partir dessas fotos publicadas nessa página, eu edito. Se é muito boa, manda para o arquivo. Eu escolho as fotos que eu peço em alta. o Foto Brasilis hoje é um grupo que faz ainda muita coisa na rua. Eu ainda vou para a rua. Fotografo menos. Mas estive na Marcha da Maconha. Essas manifestações que teve, dos estudantes, eu fui para a Paulista. A segunda eu fui também. Na terceira, no dia 14, a Greve Geral, eu fui para a Av. Paulista fotografar. Sempre que posso, ainda estou indo à rua. Menos do que naquela época. Não consigo mais. Antigamente, a gente viajava com duas câmeras fotográficas, uma P&B, outra cor, com cinco lentes. Hoje, pô, eu saio com uma Canonzinha pequenininha, só, no bolso. Quando eu vou com mochila e equipamento mais pesado, incomoda, cansa. Então, eu continuo produzindo foto documental. Meu negócio continua sendo fotojornalismo. Isso eu continuo fazendo. 

Que equipamentos você tem usado?

Eu tenho as Nikons, uma D-7000, tinha uma D-800, com lentes que vão de 16mm até 500mm. Mas eu ando muito com uma canonzinha G-7 Mark II, pequeneninha, que cabe no bolso de uma camisa, faz um arquivo grande, de 20 megas, e tem uma lente que vai de 24mm a 100mm. Se for pensar, o meu trabalho todo é coberto de uma 28mm a uma 100mm. A 24mm é 1.8. E a 100mm dela é 2.8. Aguenta um ISO alto. Então, hoje em dia, está me resolvendo para fazer a fotografia que eu gosto. Tem ainda a vantagem de não chamar a atenção de ladrão. De repente, o cara olha e pensa, “isso ai não vale porra nenhuma, é máquina de amador. Deixa o cara sossegado”. Outro aspeto são os seguranças nos lugares, nos shoppings, em lojas. Se você tirar uma Nikon, o cara vai dizer que não pode. Com a maquininha, as vezes o cara chega, eu digo que sou turista, que estou conhecendo a cidade de São Paulo. Então, isso facilitou demais. Vou usando equipamentos pequenos, mas fazendo coisas nesse estilo que você viu.

Que temas te interessam mais hoje?

Os temas sociais. A questão do menor, eu acompanho e tenho um trabalho grande. Menores abandonados em cidades, menores marginais nas cidades, menores trabalhando em canaviais e outras coisas pesadas, menores trabalhando na Amazônia. Na minha parte P&B de Serra Pelada, que é mais forte que essa colorida, tem crianças e trabalho. A questão de habitação, transporte, segurança e trabalho, são os grandes temas. O meu olho vai estar sempre voltado para isso. A educação, a criança e a educação. Habitação. Como essas pessoas estão vivendo. O trabalho, transporte e saúde. Praticamente, esses cinco itens, me ocuparam quando eu comecei no jornalismo há 50 anos atrás, praticamente, e continuam sendo de meu interesse até hoje.

Você acompanha novos fotógrafos? Tem algum trabalho que te chamou a atenção recentemente?

Mais ou menos. O trabalho do Mauricio Lima, prêmio Pulitzer, é impressionante. Tem alguns caras novos. Posso até errar o nome. Felipe Dana, é um cara novo. Tem um cara novo, no Foto Brasilis, chamado Levi Bianco. O Vitor Drago. São uns caras que, para onde eles apontam a câmera, vêm coisas que surpreendem. Acho que é ai que você vê quando o cara é bom fotógrafo, que tem talento. Desses que eu citei, o Mauricio Lima é o mais velho. Mas os outros são bem novos.

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