Retratos de uma pandemia - entrevista com Tiago Queiroz
Tiago Queiroz é um dos mais experiente fotógrafos do jornal O Estado de S.Paulo. Com 20 anos de casa, participou de coberturas importantes, como a do desastre da TAM em Congonhas, em 2007; a do pós-terremoto no Haiti, em 2010; a da onda de protestos de rua iniciados no Brasil, em 2013; a do surto de microcefalia em 2015; e a dos rompimentos das barragens de Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 2019. A cobertura mais intensa de sua vida, porém, afirma o fotógrafo, tem sido a da Covid-19. “Nunca participei de uma cobertura durante tanto tempo, sobre o mesmo assunto”, diz.
Queiroz registrou o fechamento do comércio, as avenidas vazias, as pessoas em situação de rua e vulnerabilidade social, ações de solidariedade, hospitais de campanha, o tratamento em grandes hospitais e enterros. Até que, na virada de abril para maio, começou a apresentar sintomas da doença e entrou em período de quarentena. Tosse, falta de ar, dor de cabeça. Mas a chapa do pulmão e o exame de sangue, conta, vieram sem nada -- a sorologia, para confirmar o diagnóstico, mais recentemente, indicou que não havia mesmo sido contaminado com o vírus, afirmou o fotógrafo, já de volta à ativa.
De casa, recluso na quarentena, Queiroz falou com o Frame35 sobre a experiência de cobrir a pandemia, os cuidados com a segurança pessoal nas saídas, o medo da contaminação pelo coronavírus, as principais influências e a trajetória na fotografia, entre outros assuntos.
O que é mais difícil, mais peculiar, na cobertura da pandemia?
Acho que esta é a cobertura da minha vida. Nunca participei de uma cobertura, durante tanto tempo, de um mesmo assunto. Mesmo em 2013 (com os protestos contra o aumento das passagens de ônibus). Foi uma coisa mais contundente, em junho. Mas depois foi diluindo ao longo do ano. Tinha sempre uma ou duas manifestações por semana, os confrontos com a polícia. Mas tinha os outros aspectos do jornalismo no meio. O jogo do futebol, o retrato do empresário para economia. Veio essa pandemia e mudou tudo. Nunca vi uma coisa desse jeito. E foi um crescente. As primeiras pautas foram aquela coisa de fechar o comércio. E já deu um baque desgraçado. Fui fotografar a 25 de Março e a José Paulino, no Bom Retiro. A região toda do Bom Retiro fechada. Nunca imaginei ver São Paulo desse jeito. A Paulista, o Centro Histórico. A desigualdade econômica também ficou evidente. Fui algumas vezes na Praça da Sé. Lá só tem morador de rua. Parece que se agruparam para se proteger. Parece um acampamento de refugiados, como o que eu vi no Haiti, em 2010, quando fui cobrir o pós-terremoto. Ao mesmo tempo, foi legal ver que tem muita gente querendo ajudar. Pessoas levando comida para os moradores de rua. Fotografei isso também. Restaurantes distribuindo comida na cidade. Fui no Mocotó, na Zona Norte, no Central Panelaço, do João Gordo, que faz comida vegana. Aí pensei, preciso cobrir mais os hospitais de campanha.
Como foi para entrar?
Eu tive a oportunidade de fotografar o Edson Aparecido, secretário municipal de saúde. Combinamos de fazer a foto dentro de um dos hospitais de campanha do Anhembi. Pouca gente sabe disso, mas são dois. Um gigantesco, do IABAS (Instituto de Atenção Básica e Avançada em Saúde), e o outro do SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina). Pedi para o secretário deixar eu fazer umas fotos quando começasse a funcionar. E estava prestes a começar a funcionar. Fiquei uns cinco dias em contato direto com o secretário, mandando Whatsapp para o celular. Ao mesmo tempo que ele autorizava fazer, tinha assessores que não deixavam entrar. Fui umas duas vezes até conseguir. Mas consegui no primeiro dia de funcionamento no da SPDM, que é o menor, onde cabem menos leitos. Entrei sozinho. Acho que fui o primeiro jornalista a entrar em hospital de campanha em São Paulo. Nesse, com certeza fui o primeiro. Até uma equipe da Globo ficou na porta, na hora. Só que foi um dia meio ingrato, jornalisticamente. Porque foi sábado à tarde. Sem repórter de texto. Então, peguei várias histórias, do primeiro e do segundo pacientes internados. Uma das imagens mais tristes que fiz nessa cobertura foi a da mulher de um deles, que vai embora com saco preto na mão, de costas. Estou tentando preservar o máximo possível as pessoas nessa cobertura. Converso antes. Elas nem precisam me dizer que não posso fotografá-las. Não faria nem que pudesse. E mesmo sem mostrar o rosto da mulher, a foto passa o sentimento dela. Aquela coisa do isolamento, da solidão. Essa imagem me marcou nesse dia.
E depois você foi no Emílio Ribas também...
Fui, aí já com um repórter. Para a UTI, enfermaria, Pronto Socorro. E tentei avançar um pouco mais em relação as fotos que vi de outros colegas em UTIs. Acho que consegui fazer uma diferente na enfermaria. É uma foto singela. Havia uma mulher prestes a fazer um eletrocardiograma. Ela está pondo a mão nos pés, para colocar uns eletrodos. Com uma luz de janela, a luz do quarto estava apagada. Achei que ficou uma luz bonita. A iluminação nessa foto é significativa, porque a iluminação da UTI é muito feia, aquela luz fria, que remete até a uma coisa meio macabra, de hospital. É difícil ter uma luz natural. É um aspecto que evidencia a falta de contato. Uma coisa vai remetendo a outra, simbolicamente.
Você esteve no cemitério de Vila Formosa mais recentemente...
Fui um dia por conta própria, em um plantão. Porque sabia que ia ser pesado. E foi. Fui no final da tarde. Publiquei só duas fotos (no Instagram). Estava um entardecer de outono, mas com uma névoa provocada por uma queimada dentro do cemitério. Estava pegando fogo no mato. Não sei porque. Havia fumaça e aqueles raios solares do entardecer bateram na luz e ficou um negócio doido. No cemitério vi também outras cenas que me marcaram. Uma fila de carros funerários esperando a vez para os coveiros enterrarem. E muita aglomeração de gente, parentes de mortos. Os mortos sendo enterrados um do lado do outro. Mais ou menos como em Manaus, mas ainda são covas individuais aqui. Fotografei também os coveiros no fim do dia. Acho que já estavam meio cansados. Flagrei eles trabalhando já sem os EPIs. Só um tinha, e estavam mal colocados. São fotos que mostram também o cansaço de quem está trabalhando com isso, e acaba não prestando a atenção na própria segurança. Falei com alguns rapazes que tinham vindo da construção civil, e tinham sido contratados há umas duas semanas. Tentei emplacar essa pauta, mas não consegui. Depois, fui no Hospital São Luiz. Cheguei umas 8h da manhã e fiquei até às 22h...
Como tem sido para entrar nos hospitais?
Devem ser poucos os fotógrafos que entraram tanto em hospitais. O Anizelli (Eduardo Anizelli), da Folha, que entrou no Emílio Ribas; o Yan (Yan Boechat). Acho que não tem muita gente, mesmo. Primeiro porque para entrar em hospitais, eu imagino, é preciso estar ligado a um órgão grande, respeitado. Como fotógrafo independente, você dizer, “ah, eu quero fotografar aí dentro”, já diminuí a tua chance. É diferente de chegar e dizer: trabalho para um Reuter, ou para um O Estado de S.Paulo ou uma Folha de S.Paulo. É diferente de 2013, quando às vezes tinha mais fotógrafo que manifestante em algumas pautas, muitos iniciantes - sem querer desmerecer. Agora, os poucos que estão trabalhando estão mais preparados e são mais experientes. É gente que já está na cobertura fotojornalística há anos. E trabalhando com EPIs, ao menos os básicos. E é louco porque, quando você vai fotografar um conflito entre manifestantes e a polícia, você vê a tensão, meio vê quando o policial pega a espingarda para atirar uma bala de borracha, sente quando o manifestante pega uma pedra na calçada para jogar. Dá tempo de se proteger. Agora, nessa cobertura, parece que estamos no meio de uma guerra. Mas não se vê o inimigo. O inimigo pode estar na ponta do teu dedo. Você enfia o dedo no olho e é infectado por ele. Eu estou vendo isso de perto. Já perdi gente conhecida. Estou com esse problema agora e não sei o que é. Ao mesmo tempo, é algo muito próximo de nós, jornalistas. Não é algo que está afetando um determinado grupo que não tem nada a ver com você. É uma luta de todo mundo.
Você tem usado EPIs? O que você usa? Como se protege?
Estava saindo sempre de máscara. O jornal forneceu pra gente um jogo da N95. Estou tentando fazer o que dizem para a gente fazer. Por exemplo: não entrar com o sapato no apartamento. Tiro a roupa quando chego e jogo em uma caixa de papelão, bem na entrada de casa. A roupa toda já vai pra lavar. Aí, pego a câmera e começo limpando com álcool e um pano, lente a lente, o computador, se levei ele para a rua. Limpo a tela, embaixo dele. Limpo a mochila do computador, passo álcool. O colete todo, passo álcool. Enche o saco. Enche a paciência, ter que fazer isso todo dia. Mas é uma coisa que pode te salvar. Não tem como não fazer. Vai ser difícil o fotojornalista que não vai ter contato com esse vírus ao longo desses meses. Só se não estiver na rua. Ou se não estiver onde a notícia está.
Qual foi a sua trajetória na fotografia, antes do Estadão?
Fiz curso técnico de mecânica no colegial. Eram quatro anos. No segundo, já percebi que não tinha nada a ver comigo. Mas decidi ir até o final. No último ano, trabalhei em uma fábrica de filtros pesados para a indústria. Fui operário de pátio de fábrica. Sai de lá super indeciso sobre o que fazer. Nessa época, peguei o exército. Não fui voluntário. Mas acabei pegando. Servi na polícia do exército. E lá fui carcereiro. Sai de lá mais sem saber o que fazer ainda. Pensei em direito. Meu pai é advogado. Mas usar terno e gravata o resto da vida não é pra mim. Meu pai então falou: “por que você não faz um curso de fotografia? Tem uma câmera ai do teu avô, que já passou pela família toda. Te pago um curso, vê um lugar bom ai”. Ai eu fui. Isso foi em 1996. Acabei me apaixonando. Mas ainda estava em dúvida do que fazer. Prestei para publicidade na Faap, já estudando fotografia no Senac. Fiz seis meses e descobri que não tinha nada a ver comigo ajudar a indústria a vender cigarro bebida, estimular o consumismo. Sabe quando te dá uns cinco minutos e a indecisão acaba? Pensei, vou fazer jornalismo e trabalhar em um jornal. E ai voltei a fazer cursinho e entrei na PUC. Ainda não tinha curso superior de fotografia. Foi super bom, porque gosto muito de escrever também. Tem matéria às vezes que eu escrevo, fotografo e filmo. Acho que virou diferencial no jornal. Sou conhecido por estar sempre enchendo o saco para fazer as minhas pautas. Nesse período da pandemia, tem várias pautas que eu sugeri e consegui emplacar. Sugeri notícias positivas, para não ficar a coisa tão pesada, e emplaquei várias.
Aí começou a fazer jornalismo na PUC e já decidido a trabalhar com fotojornalismo?
Sempre fui o fotógrafo da turma. Fui também um dos primeiros da minha turma a trabalhar na área. Respondi um anúncio em busca de estagiário para trabalhar em fotografia. Era de uma revista especializada em cavalos. O dono da revista abriu um daqueles arquivos cinza que correm, e dentro daqueles gavetões tinham milhares de fotos de cromos de cavalos, tudo desencontrado. Ele queria que eu arrumasse tudo por raça. Aí aprendi todas as raças de cavalo. Depois disso, sai desse lugar e fui trabalhar em estúdio de fotografia publicitário. Uma tia publicitária me arrumou. Fui um zero à esquerda. Odiei. Até hoje tenho dificuldade de montar luz. Sei o básico sobre trabalhar com luz artificial. Se todos esses caminhos pareceram errados, tudo isso, foi me moldando também. Ter trabalhado no estúdio e não ter gostado me ajudou a perceber que não ia conseguir passar um dia inteiro fotografando dentro de um estúdio. São coisas que me ajudaram na profissão. Para tratar todo mundo bem, fazer as coisas sem julgamento. O trabalho do jornalista não é julgar. Olhar as pessoas sem preconceito. Até político. Minha fotografia nunca foi muito de fazer deboche com político.
Depois do estúdio você foi pro jornal?
Sai do estúdio e fui para a editora Segmento. Entrei nos anos de ouro deles. Eles tinham uns 30 ou 40 títulos. Foi um baita aprendizado, porque consegui desenvolver minha fotografia com um pouco menos de pressão que se tivesse iniciado em jornal. Trabalhei com cromo e negativo. Com cromo, não podia errar. Ia com meu carro. Conhecia bem menos a cidade, não tinha GPS. Fui para cada bocada fotografar... Trabalhei quatro anos lá. Só que aquela minha ideia de trabalhar em jornal ainda me cutucava. Aí fui mostrar meu portfólio no Estadão e começaram a me chamar para fazer uns freelas de final de semana, à noite. Eu fazia muita balada para o Jornal da Tarde, abertura de casa noturna. Aos finais de semana, fazia muito turfe. Engraçado, até isso, o primeiro emprego, com as fotos de cavalos, ajudou. Às vezes, ligavam às 18h e perguntavam se eu podia fazer uma pauta logo mais. Eu fazia. Sábado à noite, domingo de manhã. Para mim não tinha tempo ruim. Em qualquer pauta, eu tentava tirar leite de pedra. Porque me passavam o que geralmente passam para quem está começando. Não era a pauta de capa. Ainda mais o jornal nos anos 2000. Tinha só estrelas. Vidal Cavalcante, Sebastião Moreira, Agliberto Lima, Robson Fernandjes. Para mim, era a nata da fotografia.
Em que ano foi isso?
Comecei a fazer freelas para o jornal em 2001. Fiquei cerca de um ano fazendo as duas coisas. Depois me chamaram. Ofereceram menos do que eu ganhava na editora Segmento. Mas eu queria ir. Era o sonho da minha vida. Entrei em 2002 e estou lá até agora.
Que coberturas você fez pelo jornal?
Não tenho estômago para fotografar uma guerra. Mas eu sempre pensei que conseguiria encarar um desastre natural. Aí, fui cobrir o terremoto do Haiti, em 2010. Depois fui para Brumadinho, Mariana. Cobri bastante também a história das crianças com microcefalia. Parece que quando você quer fazer, e vai de coração aberto, a coisa flui. Quando não está afim de fazer também, não dá. Nunca quis ser fotógrafo de esporte. Nunca gostei muito de fazer futebol, por exemplo. A fotografia tem essas nuances. Tem alguns temas com os quais você se identifica mais.
Você é hoje um dos fotógrafos mais antigos do jornal?
Eu estou na turma dos mais antigos, agora. Na mesma época que eu, entraram o Fukuda (Nilton Fukuda), o Alex Silva, o Clayton de Souza, que agora está na edição. E tem o Helvio (Helvio Romero), também, que é bem mais antigo que eu. Depois, é um pessoal mais novo.
Quem são as tuas grandes referências na fotografia?
Gosto muito da Marlene Bergamo, aqui em São Paulo. É referência até hoje. É uma fotógrafa que sempre surpreende. As vezes, fica um tempo sem aparecer. E ai aparece com uma pauta que desestabiliza. Admiro a elegância da fotografia do Lalo (Lalo de Almeida). Do Estadão, gosto muito da Gabi Billó (Gabriela Billó). O Daniel Teixeira, gosto muito do trabalho dele também. É muito completo, faz tudo bem feito. Tem muita coisa, mas estudei mais fotografia documental. Estudei muito Robert Frank, Bresson (Henri Cartier-Bresson), Sergio Larrain. Tem um trabalho que fiz em 2015, os meninos prateados, que me baseei muito no trabalho do Larrain com crianças. Ele é um cara também que precisa ser muito estudado. Tinha uma humanidade na fotografia dele, umas composições diferentonas. Tem um fotógrafos, que era de uma dessas ex-repúblicas soviéticas, chamado Antanas Sutkos, que olhei muito. Caiu na minha mão um catálogo de uma exposição dele, uma vez. Era tipo um Bresson soviético, do outro lado do muro. Um trabalho fodido. Gosto muito desses antigos da época do filme.
Que equipamento você usa?
Uso uma Canon EOS 1DX. A lente que estou usando mais agora é a 40mm pancake. A maior parte da cobertura da pandemia, estou fazendo com ela. Quando não posso chegar perto, uso a 70-200mm. A 40mm, se for fotografar a pessoa de corpo inteiro, já está na distância que dizem que tem que estar, uns dois ou três metros. É pequena, não inibe. A câmera fica menor, mais leve. Você vai mais despojado. É barata. Gosto muito da 50mm, também, mas tenho impressão de que é uma lente para retrato. Para fotojornalismo, preciso sempre dar um passinho para trás. Já a 35mm parece que abre um pouco mais do que preciso. A 40mm, então, resolve em 90% dos casos. Saio com ela, a 16-35mm e 70-200mm.
Você tem projetos paralelos?
Gosto muito de fotografar com filme Rolleiflex. Tenho alguns temas que desenvolvo ao longo do tempo com a Rollei. Fotógrafo algumas olarias no interior. Mas não é nada fechado. Serve um pouco como escape para mim, até para dar uma apurada no olhar. Porque o digital é foda. Acaba disparando muito. A Rollei são 12 chapas, o filme é super caro. Mas não tem um tema que posso dizer que estou fotografando.
Lembranças de Serra Pelada - entrevista com Juca Martins
Lembranças de Serra Pelada - entrevista com Juca Martins
Serra Pelada foi o maior garimpo a céu aberto do mundo em seu tempo. A descoberta de ouro de aluvião por um vaqueiro no riacho da Grota Rica, como era então conhecido o lugar, atraiu rapidamente uma legião de garimpeiros de todos os cantos do país. Juca Martins foi o primeiro fotógrafo a documentar o movimento. Chegou a Serra Pelada em 1980, quando 15 mil homens trabalhavam na cava. Havia ido à Conceição do Araguaia, no Pará, para cobrir o assassinato de um líder sindical rural. Quando soube da notícia, decidiu estender a viagem. As imagens de homens cobertos de lama, subindo e descendo escadas de madeira carregando sacos de terra, lembrando formigas, se tornariam famosas em todo o mundo. Venceu com uma o Prêmio Internacional Nikon, em 1981. Voltou depois ao garimpo, em 1986, no auge, quando 120 mil garimpeiros procuravam ouro no local, e ampliou o ensaio.
Parte do trabalho, as fotos coloridas feitas por Martins em sua segunda viagem, pode ser vista até dia 20 de agosto na Galeria Utópica. A exposição A febre do ouro é composta por 17 fotografias inéditas que mostram o trabalho intenso na cratera de 24 mil metros quadrados, aberta em meio da floresta a pouco mais de 100 quilômetros de Marabá.
Além do trabalho em Serra Pelada, Martins é conhecido pela trajetória de quase 50 anos no jornalismo brasileiro. Nascido em 1949, em Barcelos, Portugal, mudou-se com a família para São Paulo ainda menino. Começou a fotografar em 1970 e fundou, anos mais tarde, a Agência F4, ao lado de Nair Benedicto, Delfim Martins e Ricardo Malta. Primeira cooperativa de fotojornalismo brasileira, a agência ficaria conhecida, entre outras coisas, pela luta pela valorização da profissão e a defesa dos direitos de autor dos fotógrafos, a exemplo do que fez, lá fora, a lendária Magnum. Após a dissolução da F4, fundou ainda a agência Pulsar Imagens, em 1991, com Laura Del Mar e Delfim Martins.
Ao longo da carreira, trabalhou e colaborou com jornais brasileiros e estrangeiros, e foi diretor de arte do jornal Movimento, uma das mais importantes publicações alternativas do período de ditadura militar no Brasil. Cobriu conflitos no Líbano, em El Salvador e na Guatemala; recebeu o Prêmio Esso, em 1980, o Prêmio Wladimir Herzog, em 1982, e duas vezes o Prêmio Internacional Nikon (1979 e 1981). Seu trabalho, sempre politizado, já foi exposto na Espanha, Itália, França, Alemanha, Suíça, México, Cuba, Colômbia e Equador e integra o acervo de museus aqui e lá fora. Lançou uma série de livros, entre os quais, A greve do ABC (1980), Crianças do Brasil (1981), Festas populares brasileiras (1987) e São Paulo/Capital (1998).
Na entrevista a seguir, Martins fala sobre suas memórias de Serra Pelada, da experiência de fotografar no garimpo, do trabalho atual como editor e fotógrafo da agência online Olhar Imagem, da qual é fundador, e como coordenador do grupo de fotógrafos Fotobrasilis, no Facebook, entre outros assuntos.
Como foi a sua experiência em Serra Pelada? Você foi duas vezes, certo?
Fui. O começo, em 1980, logo no começo do garimpo. Teve toda a dificuldade de chegar no lugar. Na verdade, eu tinha ido para Conceição do Araguaia, para fazer uma matéria sobre o assassinato de um líder sindical rural. A partir de lá, já estava rolando a notícia de que havia sido descoberto um garimpo. Então, fui de ônibus. Durante a noite, viajei até Marabá. Em Marabá, tentei falar com um piloto de avião, combinar o preço. Mas tinha que ter uma autorização do Major Curió, que era o cara que controlava o garimpo, ligado ao SNI. Mandei minha credencial da Federação Nacional dos Jornalistas (FNAJ), pelo piloto. Ele levou ao garimpo, apresentou ao Curió. Eu fiquei no aeroporto de Marabá esperando e, seis horas depois, ele volta com a minha credencial dizendo: “ó, o major Curió autorizou a sua ida”. Ai eu fui. Desci no aeroporto, como todo mundo. Fui revistado, como todo mundo que chegava tanto de avião quando por trilhas cruzando a floresta. Passei dois dias fotografando. Voltei, seis anos depois, em 1986, já no final do garimpo. Já era uma situação completamente diferente. Não era mais o Serviço Nacional de Informações (SNI) que controlava. Era a associação de garimpeiros de Serra Pelada que fazia o controle. Era preciso ter carteirinha para poder garimpar. Já tinha interferência de gente ligada ao Ministérios de Minas e Energia, de controle de solo. Era outra estrutura. E já tinha uma mini cidade, com mercadinho e outras coisas, tudo de madeira, parecendo velho oeste. Foram dois períodos, nesse espaço de seis ano. Dois dias na primeira viagem e dois dias, na segunda.
Você fotografava o tempo todo?
O tempo inteiro. É uma coisa tão rica. Onde você olha, tem foto para fazer. Não dá pra perder clique.
Na exposição, você privilegiou as fotos do garimpo, mesmo. Do pessoal extraindo ouro. Mas você tem fotos do entorno?
Não, eu priorizei. O que interessava, mesmo, era o garimpo. Na primeira vez que fui, não tinha uma vida fora do garimpo. Os garimpeiros viviam em barracas praticamente do lado de onde eles estavam cavando. Na segunda, você já tinha uma cidadezinha, uma rua principal. A Associação de garimpeiros já era uma casa em madeira. O hotel onde eu fiquei hospedado já tinha dois andares, em madeira, com música ambiente, com bar. Mas disso eu tenho um clique ou outro. O meu interesse era a cava, a notícia estava lá. Talvez se eu tivesse mais de dois dias, talvez fosse o caso. Se você pegar uma semana, duas semanas, seria o ideal. Porque ai você pode acompanhar o cara lá dentro e ir com ele na hora que ele se lava e vai pra casa dele. Mas ai precisaria investir mais para fazer.
E você descia aquelas escadas todas?
Descia. Mas até lá no fundo eu nunca desci. Ia até o meio do caminho, ou por um caminho mais fácil, e descia. Porque o risco de ir lá embaixo, de escorregar, de haver um desmoronamento, também era frequente. Eu nunca corri riscos, não só nessa matéria. Em outras também. Sempre achei que a foto não vale a vida. Eu valorizo a vida, a obra vale menos que a vida. Não vou me arriscar para ter uma foto e dizerem "pô, o cara é um gênio da fotografia". Não, eu não. Eu vou fazer fotografia legal, e tal, mas…
Esses garimpos são frequentemente associados à ambientes sem lei, caóticos. Havia algum tipo de dificuldade para fotografar? O que você sentia?
Não, já tinha lei. O major Curió tinha controle absoluto. Você não entrava assim. Era revistado ao entrar no garimpo, para não carregar armamento. Armas eram proibidas. E você era revistado ao sair do garimpo, para evitar contrabando de ouro. Era um controle absoluto. O ouro era vendido em Serra Pelada em uma agência da Caixa Econômica Federal. Essa é uma impressão equivocada. Mesmo depois, em 1986, quando já era a associação dos garimpeiro, também havia controle. Você não entrava lá sem a carteirinha da associação. Se o cara fizesse alguma coisa errada, perdia a carteira e não conseguia mais trabalhar no garimpo. Recentemente, vi trechos de um vídeo sobre Serra Pelada, do Heitor Dhalia. Tem cenas em que o cara grita "bamborra! bamborra!", que é o que gritam quando acham uma pepita grande. Ai o cara arranca o revólver da cintura e atira para o alto. Pô, mentira. Nunca. Nunca vi pessoa com arma lá, nem dar tiro no garimpo. Aquilo é um efeito cinematográfico, não era real. No garimpo não aconteceu isso. Não tem nenhuma historia de tiro, de assassinato no garimpo de Serra Pelada, na história de seis, sete anos. O que aconteceu de violência e acidentes foi desmoronamento, falta de cuidados, por não drenar a água, morro que soterrou gente. Mas não tinha essa violência de revolver e tiro, diferente do outros garimpos. Isso parece que acontece em outros garimpos.
Você cita no texto da exposição uma história maravilhosa, do Índio, que torra uma fortuna em ouro em três anos. Como você o conheceu?
Eu não conheci. É uma citação. É uma história que está no YouTube. Quando eu fui em 1986, era uma referência. A história desse Índio circulava lá. Eu, pessoalmente, nunca conheci o cara. Nunca falei com ele. Mas ele se tornou um mito, uma história do folclore do garimpo.
Quais os teus projetos hoje?
Atualmente, eu cuido da Olhar Imagem, uma agência online de venda de fotos, licenciamento para revistas e livros escolares. Mais para mídia impressa. A agência não é só minha. Tenho um grupo de fotógrafos que trabalham comigo. Eu coordeno uma página no Facebook, chamada FotoBrasilis, onde eu fotografo, mais um grupo de 20, 20 e poucos fotógrafos também, e publicam lá. A partir dessas fotos publicadas nessa página, eu edito. Se é muito boa, manda para o arquivo. Eu escolho as fotos que eu peço em alta. o Foto Brasilis hoje é um grupo que faz ainda muita coisa na rua. Eu ainda vou para a rua. Fotografo menos. Mas estive na Marcha da Maconha. Essas manifestações que teve, dos estudantes, eu fui para a Paulista. A segunda eu fui também. Na terceira, no dia 14, a Greve Geral, eu fui para a Av. Paulista fotografar. Sempre que posso, ainda estou indo à rua. Menos do que naquela época. Não consigo mais. Antigamente, a gente viajava com duas câmeras fotográficas, uma P&B, outra cor, com cinco lentes. Hoje, pô, eu saio com uma Canonzinha pequenininha, só, no bolso. Quando eu vou com mochila e equipamento mais pesado, incomoda, cansa. Então, eu continuo produzindo foto documental. Meu negócio continua sendo fotojornalismo. Isso eu continuo fazendo.
Que equipamentos você tem usado?
Eu tenho as Nikons, uma D-7000, tinha uma D-800, com lentes que vão de 16mm até 500mm. Mas eu ando muito com uma canonzinha G-7 Mark II, pequeneninha, que cabe no bolso de uma camisa, faz um arquivo grande, de 20 megas, e tem uma lente que vai de 24mm a 100mm. Se for pensar, o meu trabalho todo é coberto de uma 28mm a uma 100mm. A 24mm é 1.8. E a 100mm dela é 2.8. Aguenta um ISO alto. Então, hoje em dia, está me resolvendo para fazer a fotografia que eu gosto. Tem ainda a vantagem de não chamar a atenção de ladrão. De repente, o cara olha e pensa, “isso ai não vale porra nenhuma, é máquina de amador. Deixa o cara sossegado”. Outro aspeto são os seguranças nos lugares, nos shoppings, em lojas. Se você tirar uma Nikon, o cara vai dizer que não pode. Com a maquininha, as vezes o cara chega, eu digo que sou turista, que estou conhecendo a cidade de São Paulo. Então, isso facilitou demais. Vou usando equipamentos pequenos, mas fazendo coisas nesse estilo que você viu.
Que temas te interessam mais hoje?
Os temas sociais. A questão do menor, eu acompanho e tenho um trabalho grande. Menores abandonados em cidades, menores marginais nas cidades, menores trabalhando em canaviais e outras coisas pesadas, menores trabalhando na Amazônia. Na minha parte P&B de Serra Pelada, que é mais forte que essa colorida, tem crianças e trabalho. A questão de habitação, transporte, segurança e trabalho, são os grandes temas. O meu olho vai estar sempre voltado para isso. A educação, a criança e a educação. Habitação. Como essas pessoas estão vivendo. O trabalho, transporte e saúde. Praticamente, esses cinco itens, me ocuparam quando eu comecei no jornalismo há 50 anos atrás, praticamente, e continuam sendo de meu interesse até hoje.
Você acompanha novos fotógrafos? Tem algum trabalho que te chamou a atenção recentemente?
Mais ou menos. O trabalho do Mauricio Lima, prêmio Pulitzer, é impressionante. Tem alguns caras novos. Posso até errar o nome. Felipe Dana, é um cara novo. Tem um cara novo, no Foto Brasilis, chamado Levi Bianco. O Vitor Drago. São uns caras que, para onde eles apontam a câmera, vêm coisas que surpreendem. Acho que é ai que você vê quando o cara é bom fotógrafo, que tem talento. Desses que eu citei, o Mauricio Lima é o mais velho. Mas os outros são bem novos.
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