Quarentena em Milão - entrevista com Rafael Jacinto
Em maio do ano passado, o Frame35 publicou entrevista com o fotógrafo Rafael Jacinto, então recém chegado à Itália. Esta semana, voltou a entrevistá-lo sobre o projeto fotográfico que vem tocando desde que começou a quarentena em Milão, onde mora.
A proibição de sair às ruas impôs uma série de limitações ao fotógrafo, que de certa forma foram incorporadas à estética do novo trabalho. Impossibilitado de ter contato direto com outras pessoas nas ruas, Jacinto procurou vizinhos através de um aplicativo e passou a marcar um horário para fotografá-los em suas janelas.
Na entrevista a seguir, o fotógrafo fala um pouco mais sobre o projeto, sobre a rotina com a família e o clima na cidade italiana durante o período de pandemia.
Como surgiu a ideia do projeto? E qual é a ideia, exatamente? Por que fotografar as pessoas nas janelas neste momento?
Eu fotografo todo dia. Há cinco anos faço um projeto chamado “A Photo a Day - Aventura de um fotógrafo” que consiste em fazer, editar e subir numa conta do Instagram uma foto por dia. Um dia fiz uma foto de minha esposa olhando a rua. Uma foto simples que, na hora de fazer upload, me fez perceber que a janela seria nossa conexão com a rua pelas próximas semanas. Quando o Conte (Giuseppe Conte, primeiro ministro da Itália) anunciou, num sábado, que a Itália inteira entraria em regime de quarentena, resolvi fazer algo.
Como são as saídas para fotografar? Você tem um tempo contado? Ou dá para chegar um pouco antes, pensar a foto, conversar à distância e clicar?
Eu encontro as pessoas através de um app chamado Next Door. Um app para conectar vizinhos. Eu então mando uma mensagem para elas e trocamos contatos. Eu marco o dia e a hora e a pessoa sai na janela. Não posso ficar andando pela rua. Algumas coisas são permitidas, como ir ao mercado do bairro, passear com o cachorro ou ir trabalhar com autorização. Então eu vejo quando tempo demoro para chegar na casa das pessoas, saio um pouco antes e dou uma olhada no local antes do horário escolhido. Faço as fotos sempre entre 18h e 18h30min, um horário que me permite enxergar dentro e fora das casas. Um horário também que, em tempos normais, as pessoas estariam indo pra casa ou pro bar. Agora estamos no horário de verão, então farei as fotos uma hora mais tarde. Com algumas pessoas eu tive mais interação. Uma me ajudou a encontrar outras pessoas, então trocamos emails e algumas telefonadas. Teve outra que ficava gritando na janela e eu fiquei morrendo de medo de chamar a atenção e aparecer a polícia perguntando o que estava acontecendo. Mas não tem interação muito maior do que a foto em si.
As pessoas retratadas te retornam para falar das fotos?
Sim, primeiro elas me mandam uma mensagem agradecendo, o que eu ainda não me acostumei. Eu que sou grato. Depois pedem as fotos. A crise aflorou um espírito de comunidade já existente. Existem muitas ações solidárias nos bairros, na cidade. Eu faço as fotos de pessoas que moram perto de mim. Estou retratando um bairro, no final das contas.
Qual a sua intenção com essas fotos? A ideia é que sejam um registro documental, artístico ou quase uma terapia em tempos de confinamento?
Eu não espero ter um motivo para fotografar. Eu vou ocupando os espaços que tenho com ideias que aparecem e se juntam às outras. Mas estou sempre em contato com outras pessoas e sempre tentando fazer os trabalhos terem algum destino. Desde que cheguei em Milão, fotografo a cidade e minha relação com ela. Acho que é mais um capítulo. Mas existem alguns planos para quando essa crise passar. Muitos fotógrafos daqui estão produzindo e já se fala de um documento maior dessa época em um futuro próximo.
O que pretende fazer com as fotos quando que a quarentena acabar?
Eu já estou feliz com a projeção que ganharam. Foram publicadas primeiro pela Folha de S.Paulo, que fez o trabalho ser visto por outros veículos brasileiros que usaram o projeto para contar como está sendo a minha vida aqui. Já falei sobre ele para a revista Trip e para a revista Glamour. E agora estou falando dele para você. Como ainda estou fotografando, cada vez tem fotos novas, o que acho interessante.
Como tem sido esse período de confinamento para você, como fotógrafo? Quer dizer, é uma profissão que, de modo geral, demanda a presença física, a conversa para fazer um retrato.
É um período difícil para qualquer pessoa que gosta de usar a cidade. Nós temos, ou tínhamos, uma rotina fora de casa. Fazemos tudo a pé ou de transporte público. Levamos e buscamos nossa filha na escola e sempre tem alguma parada no caminho em uma pracinha ou para um café. Nos finais de semana íamos sempre a museus, eventos públicos, aos parques. Fazemos piquenique, andamos em lugares que ainda não fomos. Esse confinamento faz a gente repensar tudo. Valorizamos ainda mais o espaço público coletivo, os deslocamentos a pé. Eu estou quase no limite desse projeto. Não posso mais sair como saía na semana passada. Está ficando cada vez mais restrito. Já estou pensando em alguma ideia para fotografar em casa, além do projeto de uma foto por dia.
O Brasil está vivendo agora um momento de pressão do para a derrubada da quarentena. E de minimização da crise. Como tem sido a rotina por aí?
É inacreditável, não é? Brasil tem uma grande vantagem. Está assistindo essa pandemia de longe há meses. Poderia ter preparado uma ação planejada. Mas isso aconteceu aqui também. A Itália foi o primeiro país ocidental a sofrer com o Covid-19 e os vizinhos não levaram a sério também. Espanha e França seguiram vida normal enquanto aqui já estávamos sem escolas e com museus fechados. E hoje a Espanha tem um dos cenários mais feios porque o foco de contaminação é em Madri, uma cidade super populosa. Teve uma matéria que bombou aí que diz que o prefeito de Milão se arrependeu de não ter fechado tudo logo. Os dados dessa matéria estão errados e repercutiram errados (os números eram da Lombardia. Milão nunca foi o foco da contaminação, por exemplo). Mas a gente sempre acha que não vai acontecer com a gente, não é? É um problema do ser humano.
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