Recuperação e retomada - entrevista com Nicole Kramm
Foi durante uma viagem de férias pela América Latina, em 2015, que a chilena Nicole Kramm decidiu largar o trabalho como técnica em análises químicas para se dedicar à fotografia. Até então, fotografava apenas como amadora. Foi estudar fotojornalismo, se formou em cinema, com ênfase em documentários, e fez especialização em Cuba, na Escola Internacional de Cinema e TV de San Antonio de los Baños. Em paralelo, começou a desenvolver projetos sobre questões culturais e sociais vinculadas a direitos humanos, ecologia, migração, diversidade e igualdade sexual, e a demandas e conflitos políticos, principalmente para veículos de mídia internacionais, como a Al Jazira em inglês.
Um de seus trabalhos mais recentes é o documentário de curta duração “No es no” (“Não é não”), para a AJ+, lançado este ano, sobre o movimento feminista no Chile. Também registrou a série de intensos protestos contra o presidente chileno Sebastián Piñera, iniciados no final do ano passado, em Santiago. Até que, na virada de 2019 para 2020, se tornou mais uma das centenas de vítimas de traumas oculares causados por disparos da polícia chilena.
Enquanto luta para recuperar ao menos parte da visão do olho esquerdo, Nicole vem trabalhando em um documentário sobre a irmã Down, paciente respiratória crônica e grupo de risco na pandemia da Covid-19. (Até poucos dias antes da publicação da entrevista, trabalhava também em uma série fotográfica sobre os protestos no Chile, selecionada para um festival de fotografia em Hannover, na Alemanha, cancelado por causa da pandemia)
Na entrevista a seguir, Nicole fala sobre o olho atingido, seu processo de recuperação, as implicações do ferimento sobre o seu trabalho como fotógrafa, projetos em andamento e sua trajetória profissional, entre outros assuntos.
Você foi atingida no olho por uma bala de borracha nos protestos recentes contra o governo no Chile. Na ocasião, pelo seu relato no Instagram, nem estava participando. estava voltando de um encontro com amigos e cruzou com policiais que atiraram. Como está seu olho?
Relato esse dia no meu Instagram (o relato traduzido segue logo abaixo). Atiraram de forma criminosa. Eu estava andando com minha câmera, com alguns colegas, íamos trabalhar, para documentar o Ano Novo e, naquela hora, às 23h, não havia protestos. Foi muito traumático, não pude acreditar, senti muita impotência.
“Quero testemunhar algo totalmente criminoso e doloroso que experimentei na véspera de Ano Novo. Estávamos caminhando pela avenida, alegres, com amigos e colegas, em direção à Praça Dignidade (epicentro dos protestos contra o governo do presidente chileno Sebastián Piñera no ano passado e início deste ano), após um belo jantar. Quando passamos pelo monumento de Carab.Chile, vimos vários piquetes de policiais entre a praça e as cercas de proteção. Alguns policiais tinham estilingues e estavam atirando pedras. Aceleramos imediatamente o ritmo quando, de repente, sinto uma pancada muito forte no meu olho, que veio de onde esses piquetes estavam localizados. O golpe foi tão forte que me derrubou, me desequilibrou completamente e, instantaneamente, eu estava sangrando muito. Pensei no pior, foi traumático e desesperador. Os voluntários da saúde enfaixaram meus olhos e minha cabeça, me colocaram na maca e, por incrível que pareça, os carabinieri continuaram atirando. Então, o paramédico colocou um escudo para me tirar do lugar. No chão, havia uma espécie de pelotas pretas, bolas de aço, bolas de vidro. PS: Estava tudo quieto, sem grupos de manifestantes. Passei a noite com o médico, enfermeiras e dezenas de jogadores. Estive na emergência, na unidade de traumas oculares do Hospital Salvador, que fez todo o possível me dar um bom tratamento e salvar meu olho (ferramenta de trabalho, sou repórter audiovisual e repórter gráfico). Tenho um trauma ocular grave e vejo uma nebulosa negra pelo olho esquerdo. Não perdi o globo ocular. Até quando esses crimes contra a humanidade? Ontem fui eu que, assustada com a agressividade policial, entrevistei chicxs com perda de visão. Hoje infelizmente foi a minha vez. No local, descobri que outro parceiro recebeu um impacto do gás lacrimogêneo. Envio-lhe muita força e amor. Estou angustiada, sinto muita impotência. Não podemos permitir essa barbárie por andar na rua! Meu único erro foi passar na frente deles. Realmente são psicopatas, não há outra termo. Renuncie Guevara, renuncie Rozas, Blumel, renuncie Piñera. Chega de mutilações! Agradeço à equipe médica, que me deu grande apoio, e aos meus amigxs incondicionais pelo apoio. Justiça e dignidade”.
Como tem sido sua vida desde então?
O primeiro mês foi horrível, demorei muito para voltar à vida "normal". Tive sintomas depressivos e também muita dor física. Mas, acompanhada pela minha família, consegui lidar com isso. Agora estou 100% focada em me curar e em meu trabalho autoral. Em relação ao tratamento, estou fazendo várias terapias convencionais e não convencionais para recuperar algum percentual da visão. Tenho sido fortemente apoiada por um exército de amigos, colegas e familiares. Estou muito calma e espero encontrar um tratamento experimental que me ajude a recuperar a visão, além de obter justiça. Farei o possível para que os culpados paguem.
De que forma o trauma afetou a sua fotografia?
Arrebatar a visão de uma pessoa que vive e trabalha atrás da câmera é terrível, afetará o resto da minha vida. Quando assimilei toda a gravidade e chorei tudo o que tinha que chorar, prometi a mim mesma não pensar naquelas pessoas que me machucaram tanto. Não queria guardar rancor para não desacelerar minha recuperação e poder sarar o mais rápido possível, física e psicologicamente. Devido ao ataque policial, perdi 95% da visão do olho esquerdo. O que mais sinto é ter visão dupla e dores de cabeça constantes. Mas, com o passar do tempo, elas têm sido menos frequente. Estou passando por tratamentos para melhorar habilidades, percepção e precisão. Estou certa de que poderei trabalhar 100%, apesar da perda que tive.
Você tem um trabalho engajado política e socialmente. Como é seu processo criativo?
Como ativista, comunicadora, fotógrafa, produtora audiovisual, jornalista, etc., é um dever político e social para mim mostrar através da imagem e de relatos o que o povo está vivendo. Além de protestos pacíficos, também há violência e abuso, violações dos direitos humanos. Não podemos nos calar. Isso é história, é por isso que devo estar na rua trabalhando. Em tempos de contracultura televisiva, a mídia independente é a tela comunicacional da revolução popular e não podemos parar de dar visibilidade a resistência e a luta, até que obtenhamos a dignidade que todos nós merecemos. E até que seja feita justiça pelos mortos na democracia. Sempre retratei as pessoas do ponto de vista social, zangadas e empoderadas, da forma como estão. Sempre refleti a realidade de forma crua, mas com cuidado e estética. Sempre decidi entre situações, percebi-as, conversei com elas, procurei-as. Não quis “romantizar” a repressão e a violência, mas quis embelezar a resistência através de ângulos elaborados, luzes em diferentes horários, ações, cores fortes, fogo, etc. Através da cor e da linguagem corporal poderosa, tenho promovido e contado muitas histórias de luta.
Quais os planos para a quarentena do coronavírus? Vai cobrir na rua? Ou pretende dedicar o tempo em casa à recuperação e à elaboração de novos projetos?
Estive em quarentena por resguardo, mas atualmente estou terminando um projeto audiovisual sobre a quarentena de minha irmã, uma jovem com síndrome de Down e paciente respiratória crônica, que faz parte do grupo de risco da Covid-19, tomando todas as garantias de higiene necessárias.
Tem novos projetos em estudo?
Sim, estou editando “Balas contra Pedras”, uma série fotográfica selecionada para o Festival de Hannover, na Alemanha, para ser exibida junto com uma série de palestras e testemunhos do meu trabalho como repórter (em função do Covid-19, o festival em Hannover foi cancelado dias depois da entrevista). Este projeto inclui uma série de fotografias documentais de vítimas de trauma ocular por agressão policial. Como produtora audiovisual, finalizamos o documentário “Não é não”, do movimento feminista no Chile, para a Al Jazira em inglês, e agora estou trabalhando em um pequeno documentário sobre a quarentena de coronavírus, que está prestes a ser lançado em espanhol no Aj+. (canal online da Al Jazira).
Conte um pouco sobre sua trajetória na fotografia?
Eu era técnica em análises químicas, fotografava só como amadora. Foi no ano de 2014 que decidi viajar pela América Latina por dois meses para conhecer o povo latino. Sempre gostei de sociologia e antropologia, por isso sempre foi um prazer viajar e mergulhar em mais culturas. Levei uma câmera de bolso na viagem, uma dessas Lumix pequenas e me gravava fazendo coisas em diferentes situações, tipo jornalista de viagem. Então, quando voltei ao Chile, percebi que não queria viver trabalhando em um laboratório químico pelo resto da minha vida. Meu negócio era comunicação, visual e social. Então, abandonei um bacharelado em química de quatro anos para estudar fotojornalismo e fazer graduação em cinema, em 2015. Foi a melhor decisão que poderia ter tomado na vida. Sou fotógrafa de documentários, trabalho e reflito sobre questões culturais e sociais vinculados a direitos humanos, ecologia, migração, diversidade e igualdade sexual, demandas e conflitos políticos. Estudei fotografia jornalística e fiz bacharelado em cinema, com ênfase documental. Também me especializei em fotografia e direção de câmera em escolas de cinema no Chile e na Escola Internacional de San Antonio de los Baños, em Cuba. Atualmente, trabalho como produtora audiovisual freelancer para veículos internacionais.
Quarentena em Milão - entrevista com Rafael Jacinto
Em maio do ano passado, o Frame35 publicou entrevista com o fotógrafo Rafael Jacinto, então recém chegado à Itália. Esta semana, voltou a entrevistá-lo sobre o projeto fotográfico que vem tocando desde que começou a quarentena em Milão, onde mora.
A proibição de sair às ruas impôs uma série de limitações ao fotógrafo, que de certa forma foram incorporadas à estética do novo trabalho. Impossibilitado de ter contato direto com outras pessoas nas ruas, Jacinto procurou vizinhos através de um aplicativo e passou a marcar um horário para fotografá-los em suas janelas.
Na entrevista a seguir, o fotógrafo fala um pouco mais sobre o projeto, sobre a rotina com a família e o clima na cidade italiana durante o período de pandemia.
Como surgiu a ideia do projeto? E qual é a ideia, exatamente? Por que fotografar as pessoas nas janelas neste momento?
Eu fotografo todo dia. Há cinco anos faço um projeto chamado “A Photo a Day - Aventura de um fotógrafo” que consiste em fazer, editar e subir numa conta do Instagram uma foto por dia. Um dia fiz uma foto de minha esposa olhando a rua. Uma foto simples que, na hora de fazer upload, me fez perceber que a janela seria nossa conexão com a rua pelas próximas semanas. Quando o Conte (Giuseppe Conte, primeiro ministro da Itália) anunciou, num sábado, que a Itália inteira entraria em regime de quarentena, resolvi fazer algo.
Como são as saídas para fotografar? Você tem um tempo contado? Ou dá para chegar um pouco antes, pensar a foto, conversar à distância e clicar?
Eu encontro as pessoas através de um app chamado Next Door. Um app para conectar vizinhos. Eu então mando uma mensagem para elas e trocamos contatos. Eu marco o dia e a hora e a pessoa sai na janela. Não posso ficar andando pela rua. Algumas coisas são permitidas, como ir ao mercado do bairro, passear com o cachorro ou ir trabalhar com autorização. Então eu vejo quando tempo demoro para chegar na casa das pessoas, saio um pouco antes e dou uma olhada no local antes do horário escolhido. Faço as fotos sempre entre 18h e 18h30min, um horário que me permite enxergar dentro e fora das casas. Um horário também que, em tempos normais, as pessoas estariam indo pra casa ou pro bar. Agora estamos no horário de verão, então farei as fotos uma hora mais tarde. Com algumas pessoas eu tive mais interação. Uma me ajudou a encontrar outras pessoas, então trocamos emails e algumas telefonadas. Teve outra que ficava gritando na janela e eu fiquei morrendo de medo de chamar a atenção e aparecer a polícia perguntando o que estava acontecendo. Mas não tem interação muito maior do que a foto em si.
As pessoas retratadas te retornam para falar das fotos?
Sim, primeiro elas me mandam uma mensagem agradecendo, o que eu ainda não me acostumei. Eu que sou grato. Depois pedem as fotos. A crise aflorou um espírito de comunidade já existente. Existem muitas ações solidárias nos bairros, na cidade. Eu faço as fotos de pessoas que moram perto de mim. Estou retratando um bairro, no final das contas.
Qual a sua intenção com essas fotos? A ideia é que sejam um registro documental, artístico ou quase uma terapia em tempos de confinamento?
Eu não espero ter um motivo para fotografar. Eu vou ocupando os espaços que tenho com ideias que aparecem e se juntam às outras. Mas estou sempre em contato com outras pessoas e sempre tentando fazer os trabalhos terem algum destino. Desde que cheguei em Milão, fotografo a cidade e minha relação com ela. Acho que é mais um capítulo. Mas existem alguns planos para quando essa crise passar. Muitos fotógrafos daqui estão produzindo e já se fala de um documento maior dessa época em um futuro próximo.
O que pretende fazer com as fotos quando que a quarentena acabar?
Eu já estou feliz com a projeção que ganharam. Foram publicadas primeiro pela Folha de S.Paulo, que fez o trabalho ser visto por outros veículos brasileiros que usaram o projeto para contar como está sendo a minha vida aqui. Já falei sobre ele para a revista Trip e para a revista Glamour. E agora estou falando dele para você. Como ainda estou fotografando, cada vez tem fotos novas, o que acho interessante.
Como tem sido esse período de confinamento para você, como fotógrafo? Quer dizer, é uma profissão que, de modo geral, demanda a presença física, a conversa para fazer um retrato.
É um período difícil para qualquer pessoa que gosta de usar a cidade. Nós temos, ou tínhamos, uma rotina fora de casa. Fazemos tudo a pé ou de transporte público. Levamos e buscamos nossa filha na escola e sempre tem alguma parada no caminho em uma pracinha ou para um café. Nos finais de semana íamos sempre a museus, eventos públicos, aos parques. Fazemos piquenique, andamos em lugares que ainda não fomos. Esse confinamento faz a gente repensar tudo. Valorizamos ainda mais o espaço público coletivo, os deslocamentos a pé. Eu estou quase no limite desse projeto. Não posso mais sair como saía na semana passada. Está ficando cada vez mais restrito. Já estou pensando em alguma ideia para fotografar em casa, além do projeto de uma foto por dia.
O Brasil está vivendo agora um momento de pressão do para a derrubada da quarentena. E de minimização da crise. Como tem sido a rotina por aí?
É inacreditável, não é? Brasil tem uma grande vantagem. Está assistindo essa pandemia de longe há meses. Poderia ter preparado uma ação planejada. Mas isso aconteceu aqui também. A Itália foi o primeiro país ocidental a sofrer com o Covid-19 e os vizinhos não levaram a sério também. Espanha e França seguiram vida normal enquanto aqui já estávamos sem escolas e com museus fechados. E hoje a Espanha tem um dos cenários mais feios porque o foco de contaminação é em Madri, uma cidade super populosa. Teve uma matéria que bombou aí que diz que o prefeito de Milão se arrependeu de não ter fechado tudo logo. Os dados dessa matéria estão errados e repercutiram errados (os números eram da Lombardia. Milão nunca foi o foco da contaminação, por exemplo). Mas a gente sempre acha que não vai acontecer com a gente, não é? É um problema do ser humano.
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